terça-feira, 28 de abril de 2009

Trecho do livro Sexo e as Origens da Morte, de William R. Clark

Epílogo

E toda vez, repetidamente,
Faço meu lamento contra a destruição.

Yevgeny Yevtushenko

              

Nós morremos porque nossas células morrem. Claramente, a definição de "humanidade" deve transcender as descrições que podemos derivar do estudo da vida de células individuais; e, no entanto, é verdade que, quando chega para nós, a morte nos colhe célula por célula. A morte de nossas células, como vimos, não é uma exigência a priori da vida. É uma conseqüência evolutiva da forma como nos reproduzimos e de nossa pluricelularidade. Por motivos que são difíceis de discernir ao longo de centenas de milhões de anos de tempo evolutivo, a decisão de usar o sexo como um meio de reprodução foi seguida, na linha evolutiva que leva aos seres humanos, pela geração de DNA reprodutivamente irrelevante. Este DNA irrelevante, segregado nas células somáticas, transformou-se em nós.

O DNA só tem um objetivo: reproduzir-se. Ele faz isto de acordo com as mesmas leis físicas — os mesmos princípios da termodinâmica — que regem todo o resto do universo. Depois que um número razoável de nossas células germinativas tiveram a oportunidade de transmitir seu DNA à geração seguinte, nossas células somáticas tornaram-se excesso de bagagem. Elas não servem a nenhuma função útil, e elas — nós — devem morrer, para que a mudança possa ser transmitida à geração seguinte.

Sob orientação do DNA, cada célula somática do corpo senescerá e por fim morrerá por conta própria. Isto ficou conhecido como morte programada. Se escaparem da morte celular acidental, as células serão instruídas a cometer suicídio — a executar a seqüência de eventos conhecida como morte celular programada através de apoptose. Com mais freqüência, isto acontece quando o DNA de uma célula acumulou níveis inaceitáveis de mutações. Mas a morte do corpo raramente ocorre devido aos efeitos cumulativos de extinção seqüencial de células somáticas, uma por uma. Autópsias de pessoas muito velhas (com mais de oitenta anos) em geral revelam sinais de mais ou menos meia dúzia de doenças graves que levariam à morte em pouco tempo. Mais cedo ou mais tarde, à medida que as células morrem gradualmente por apoptose e os órgãos essenciais como os rins, os pulmões ou o fígado começam a falhar devido à perda celular, o coração pára de bater. Depois o processo de morte ocorre de uma forma muito acelerada. Privadas de nutrientes e do oxigênio levados pelo sangue, as células restantes do corpo sofrerão uma morte necrótica violenta em questão de minutos. As células cerebrais serão as primeiras a partir; o resto logo as seguirá.

Quer as células morram por necrose ou por apoptose, o principal elemento de sua morte é a perda da estrutura celular cuidadosamente integrada que permite que o metabolismo se sustente. Na morte celular necrótica, a estrutura é rompida principalmente pelo influxo de água, que estica, rasga e dilacera a célula. Na apoptose, as estruturas internas (além do DNA) não são alteradas tanto como são segregadas umas das outras à medida que a célula se desintegra em corpos apoptóticos. Todas as organelas estão ali, mas não podem mais interagir. Uma coleção — mesmo uma coleção completa — de organelas em corpos apoptóticos separados não é uma célula, como uma coleção de órgãos corporais em sacos separados não é um ser humano. As estruturas de cada órgão ainda estão ali e podem funcionar por algum tempo, mas a estrutura do organismo se perdeu para sempre. O mesmo acontece com uma célula morrendo por apoptose, entornando partes de si mesma como pétalas de uma flor ou folhas de uma árvore.

A ordem em que morrem as células somáticas não é de preocupação especial para a natureza, embora recentemente venha se tornando uma preocupação crescente para nós. Quando o coração pára de bater, as células cerebrais morrem primeiro, como vimos. Outras células as seguem, o momento de sua morte determinado por sua capacidade de realizar metabolismo anaeróbico com as reservas de nutrientes separadas para épocas de escassez. Ninguém parece ter guardado (ou pelo menos publicado) registros precisos sobre a questão, mas é muito provável que consigamos recuperar células viáveis, como fibroblastos, de um ser humano, por algum tempo, depois da perda total da função cerebral e de uma declaração oficial de morte. Postas em cultura, estas células podem continuar a completar seu limite de Hayflick por muitas semanas ou meses depois da morte do corpo de que provieram, até que finalmente sucumbam a sua própria morte geneticamente codificada por apoptose. A não ser, é claro, que de certa forma sejam transformadas por vírus, e neste caso elas poderiam carregar o holograma de DNA deles interminavelmente no futuro como uma célula germinativa renegada, ou como as células retiradas do tumor de Henrietta Lacks.

Aprendemos a intervir no processo de morte iniciado pela perda de células cardíacas e, em alguns casos, esta intervenção funciona muito bem. O antes rápido e irreversível declive para a morte pode com freqüência ser detido. Um coração defeituoso pode até ser substituído, seja por transplante, ou, possivelmente um dia, por um coração totalmente artificial; o coração, afinal, é simplesmente uma bomba. Alguns tipos de danos ao cérebro podem ser reparados também mas, depois que vários neurônios morrem, eles não podem ser trazidos de volta à vida e não podem ser substituídos. A tecnologia de ressuscitação nos obrigou a encarar com honestidade a questão da morte na medida em que se relaciona com a função cerebral; estamos chegando ainda mais perto da concepção de que a morte de muitas células no córtex do cérebro indica a morte da pessoa, se não do corpo. E, no entanto, até esta definição pode não ser suficiente para resolver os problemas que temos criado para nós mesmos. Como declarou Peter Singer, eminente bioeticista australiano, em seu livro Rethinking Life and Death: "O conserto pode prosseguir indefinidamente, mas é difícil ver um futuro longo e benéfico para uma ética tão paradoxal, incoerente e dependente da presunção quanto se tornou nossa ética convencional de vida e morte. Novas técnicas médicas, decisões em casos judiciais marcantes e mudanças na opinião pública estão constantemente ameaçando trazer todo o edifício abaixo."

Todavia, no presente, os seres humanos parecem ter decidido que as células do cérebro são mais importantes na definição da vida do que outras células. A natureza, é claro, não faria esta distinção; de seu ponto de vista, um cérebro não é mais ou menos importante do que um pulmão, um rim ou um pé. A natureza não reconhece nenhuma hierarquia entre as células somáticas. Por que fazemos esta distinção se a natureza não faz? O cérebro evoluiu para coordenar as atividades do corpo com mais eficácia, para tornar melhor o organismo que dirige na competição por recursos, por sobrevivência e pelo direito de transmitir um conjunto específico de genes — um padrão específico de DNA. Mas, em algum lugar ao longo do caminho, o cérebro humano deu uma guinada completamente sem precedentes; ele adquiriu a mente. Isto não significa absolutamente nada para a natureza, exceto que pode promover o bem-estar do DNA, mas nos leva, como organismos biológicos, a arenas distintamente não-biológicas que aparentemente têm pouco a ver com a sobrevivência e a reprodução: a poesia, por exemplo, ou o raciocínio puro ou a matemática pura; a arte, a religião e a música; as comédias de situação e as novelas de tevê. Daí para a frente, as pressões que regem nossa evolução não são mais estritamente biológicas; através da mente, adquirimos cultura e esta, em vez de uma competição pelos recursos necessários até a idade de reprodução, é agora a força seletiva predominante em nosso sucesso reprodutivo. Como assinalou Richard Dawkins, embora a cultura exista só em nossa mente, ela tem seu próprio momentum evolutivo, assim como os genes e o DNA.

Ainda temos de ver como, a que ponto ou até se a aquisição da mente pode ter alterado ou ainda pode alterar a ordem natural das coisas. Os seres humanos escaparam da árdua realidade da seleção natural, mas o resto do planeta biológico, não. Não é que simplesmente tenhamos criado passatempos mentais que tornam nossa passagem pela vida mais agradável, ou pelo menos mais tolerável; através da mente, começamos a alterar a natureza, e até nosso eu biológico, de formas nunca vistas na biosfera em que evoluímos. Não mais sujeitos à morte primitiva e ríspida que a natureza reserva para os fracos ou desajustados, começamos a acumular defeitos genéticos que tempos atrás tinham sido rejeitados pela natureza. A medicina do século XX já nos permitiu alterar a composição do pool de genes humanos mantendo vivas por toda a idade reprodutiva pessoas que, num ambiente mais natural, teriam morrido de doença genética. A medicina do século XXI, através da terapia genética, estenderá esta tendência a fronteiras que ainda só percebemos vagamente, com conseqüências genéticas que só podemos conjeturar. E não contentes em ter escapado da competição por recursos imposta a outros seres vivos, começamos a alterar, por poluição, e a esgotar, pelo consumo, aqueles recursos dos quais dependem outras formas de vida. Isto tem de ter um preço. A maioria de nós se conscientizou de que o esgotamento de recursos naturais nos priva de espécies cuja beleza, graça ou mestria física admiramos e cuja ausência deste planeta seria pranteada. O que mal começamos a perceber é que estas espécies estão no habitat natural de um leque de organismos microbianos com quem elas viveram por milhões de anos em equilíbrio pacífico. Privadas de seus hospedeiros naturais, alguns destes microrganismos, por mero desespero, começaram a saltar para os seres humanos, onde não há tal equilíbrio e pode não haver por milhões de anos no futuro. Os resultados, como vimos com os vírus Ebola e da Aids, podem ser desastrosos.

Nossa mente chegou a considerar nosso corpo algo mais do que um veículo elegante para nutrir e transmitir o DNA e temos relutado em deixar que a reprodução seja, como é para todas as outras criaturas vivas, nosso único imperativo, nosso único impacto sobre o mundo em que vivemos. Tornamo-nos criaturas racionais que pensam em muito mais do que o DNA. Como mostra a história da cirurgia cerebral, o cérebro, através da mente, pode até pensar em si mesmo. Mas a mente que contempla o cérebro — e portanto a si mesma — é meio como olhar um espelho com outro espelho em nossas costas; leva a uma gama interminável de imagens frontais e traseiras até o infinito. Assim, quando tentamos pensar no universo e em nosso lugar nele, quando pensamos no que nos define como seres humanos, ou na vida e na morte, talvez devamos reter um certo ceticismo em relação a nossas conclusões. Devemos nos lembrar de que quaisquer que sejam as idéias que possamos sustentar sobre a importância do cérebro como mente, estas idéias se originaram da mente como cérebro. Em outro aspecto dos assuntos humanos, isto seria considerado conflito de interesses. É uma idéia simples, mas a mente humana não é o poder que impele o universo. Gostemos ou não, a mente como cérebro é impelida pelo DNA, esta estranha molécula que por sua vez é impelida — irracionalmente, supomos, e no entanto de certa forma desesperadamente — a se reproduzir.

Quando completarmos o processo de morte, cada célula de nosso corpo estará morta, como pretendia a natureza. Se tivermos feito nossa parte, teremos transmitido nosso DNA, embalado nas células germinativas, à geração seguinte. Este DNA pode muito bem estar à beira de nosso leito de morte na forma de um filho ou de uma filha. O DNA de todas as outras células de nosso corpo — nosso DNA somático — não será mais de nenhuma utilidade; como o DNA do primeiro macronúcleo redundante um bilhão de anos atrás, ele será destruído. Para parafrasear uma velha visão biológica, um ser humano é apenas a forma de uma célula germinativa produzir outra célula germinativa — como acontece na barata; como acontece no repolho. Esta não é uma forma muito lisonjeira de nos explicarmos a nós mesmos. Queremos tão desesperadamente ser mais do que um veículo para o DNA, e somos, pelo menos temporariamente. Todavia, as células somáticas morrerão no fim de cada geração, quer sejam parte da asa de um inseto ou de um cérebro humano. Podemos passar a entender a morte, mas não podemos mudar este fato simples e singular: no esquema maior das coisas, não importa nem um pouco que algumas células somáticas contenham tudo o que mais amamos em nós mesmos; nossa capacidade de pensar, de sentir, de amar — de escrever e ler estas palavras. Em relação ao processo básico da vida, que é a transmissão de DNA de uma geração à seguinte, tudo isso não passa de som e fúria, o que certamente significa muito pouco e muito possivelmente não quer dizer nada.

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